quinta-feira, 3 de junho de 2010

Para refletir

Conheci uma menina enquanto esperava uma aula sentada no banco de uma praça em Porto Alegre. Para preservar sua imagem a chamarei Érica. Sentei ali com dois livros e um caderno, decidida a ler durante a longa hora de espera que teria que enfrentar. Não li mais do que meia página, porque ela puxou conversa.


Érica tem 15 anos, tem uma boa aparência e estava vestida adequadamente. Não sei ainda se por necessidade ou simpatia, mas quando ela começou a falar nada a deteve e, em cerca de meia hora, me contou sobre sua vida, algumas vezes com detalhes e outras com uma tristeza nitidamente implícita em seu olhar.

Começou contando da escola. Matriculada na sétima série embora comparecesse muito pouco às aulas. Desistiu de estudar porque é muito difícil. Iniciou assim, mas pouco depois resolveu contar a verdade. Não vai mais à escola porque o namorado não quer que ela vá. Devo ter feito uma cara estranha, porque ela foi logo explicando. “Meu namorado tem 20 anos e também está na sétima série, mas não gosta de estudar. Eu moro com ele, então dependo dele prá me levar prá escola. Ele me leva de vez em quando porque se eu não for minha mãe perde o bolsa-família e daí ela vai me xingar.” Érica também não pode ir de ônibus porque não tem dinheiro. Não pode trabalhar porque tem 15 anos e o namorado não dá nenhum centavo porque não quer que ela vá à escola sem ele. A mãe, pelo que entendi, só se faz presente no dia de receber os trocados do bolsa-família.

Depois trocou de assunto. Seu pai havia sugerido que ela começasse a trabalhar num supermercado quando fizesse 16 anos, que isso abriria outras portas para ela, mas ela não sabia ao certo que era isso o que queria e perguntou minha opinião. Obviamente estimulei essa idéia e ainda complementei dizendo que com o salário ela poderia pagar os estudos ou ao menos a passegem de ônibus até o colégio. Estimulei que continuasse a estudar até terminar o segundo grau e ela agradeceu o conselho e disse que tentaria voltar a estudar. Não sou inocente a ponto de achar que a convenci realmente, mas acredito que esta conversa curta sirva de referência para alguma reflexão.

Érica não me explicou porque segue morando com o namorado, mas disse que brigam muito. Talvez não saia por amor. Talvez porque ela tenha saído da casa da mãe por viver numa situação ainda pior. Então segue dia após dia assim, sem rumo, sem vontade própria e sem visualizar o futuro. Chegou a me relatar que gostaria mesmo era de voltar a ser criança, mas não teve tempo de explicar os motivos porque seu namorado chegou gritando e a arrastou (literalmente) para o carro. Mesmo assim teve a capacidade de se virar para mim e se despedir, me desejando uma boa semana.

Enquando via o carro se afastar começei a pensar nas incoerências do mundo. A mãe de uma adolescente ganha o bolsa-família para que a filha possa estudar. Recebe o benefício, mas não ajuda a filha, que nem sequer mora com ela. A menina mora com o namorado, tem vida de casada e obrigações de adulto, mas não pode trabalhar porque tem 15 anos e seria considerado trabalho infantil. Mas que infância é essa?

E sobre o trabalho “infantil” na adolescência: Criam-se hordas de jovens preguiçosos e irresponsáveis que não estudam porque sabem que não podem ser reprovados e porque não tem nenhum interesse senão em vadiar. Aos 16 anos já não querem trabalhar, porque trabalhar exige algo que elas não conhecem: disciplina. Até essa idade eles têm apenas direitos. Direitos, direitos e direitos. Nenhum dever. E jamais tente dizer a uma criança ou adolescente que deve isso ou aquilo: é contra a lei. E, de uma hora para a outra, já adultos (sim, adultos, porque a vida os rouba a infância bem cedo) querem que mudem? Que entendam que existem deveres, leis e hierarquias que devem ser obedecidos?