quarta-feira, 28 de abril de 2010

Filosofia de caixa de motoboy

          Dificilmente saio de casa e não me incomodo ao menos uma vez com estes seres de índole um tanto quanto duvidosa. A maior parte deles parece sair de casa pela manhã com o intuito de atrapalhar o trânsito e provocar acidentes.
          Mas hoje um destes simpáticos motoboys que costuram toda a longa fila de carros e param na frente de todos, em cima da faixa de segurança para serem os primeiros a arrancar quando parecer seguro (nem sempe este momento corresponde àquele em que o sinal verde acende), colocou-se bem em frente ao meu carro.
          Na sua caixa (que era branca, como esta da ilustração) havia um adesivo com a seguinte frase filosófica: "Mulher e futebol: onde tem pelada, tem torcida." Fala sério... e eu tenho que ler uma coisa dessas as 8 horas da manhã???

O fantástico mundo de Marcele (parte 1/6)

          Eram 9 horas quando Marcele chegou na porta do colégio onde cursava o terceio ano do ensino médio. Ajeitou sua bolsa Vitor Hugo no ombro e prendeu seus longos cabelos castanhos para trás usando seu óculos de sol Fendi. No braço esquerdo carregava alguns livros e um caderno. Apesar do atraso, entrou lentamente, desfilando no corredor vazio como se estivesse numa passarela até sua sala de aula.

          A professora de matemática a fitou, acusadora, mas Marcele fingiu não perceber e se dirigiu ao lugar onde costumava sentar. A aula prosseguiu, mas o pensamento de Marcele estava longe. Precisava com urgência ir até aquele centro de compras popular gastar a parca mesada em artigos falsificados, copiados das grifes mais famosas.

          Desde criança não aceitava o fato de ter nascido numa família pobre. Imaginava-se filha de um empresário rico ou de uma atriz famosa, morando numa mansão cinematográfica, brincando com bonecas caríssimas e vestindo apenas grifes de alta costura. Achava injusto a vida não ser assim, mas havia encontrado a solução ideal: se não podia mudar sua realidade, podia ao menos evitar que os outros a descobrissem.

          Aproveitou o intervalo para conversar com as colegas sobre um trabalho de grupo que não poderia mais ser realizado na sua casa. Há meses que as meninas pediam para conhecer a única das casas que ainda não conheciam: a de Marcele. Vindas de famílias não muito abastadas, imaginavam, a julgar pela forma de agir da colega, que morasse numa linda casa com muito conforto e empregados. Melhor que continuassem a pensar asim.

          Durante a aula seguinte ficou sonhando com um vestido fantástico que vira numa vitrine. Com ele sim poderia entrar numa festa só de gente rica e arrasar. Todos os homens cairiam aos seua pés e ela teria enfim a vida com que sonhava. Estava por concluir que aquele vestido era o passaporte para a felicidade quando lembrou da etiqueta: R$1899,00. Definitivamente, tinha nascido para ser infeliz.

          Uma das suas colegas bateu no seu ombro e a chamou para a realidade: o exercício valia nota e deveria ser entregue em 15 minutos. Marcele preencheu rapidamente as respostas e aproveitou para sair mais cedo da escola. Precisava ter certeza que não existia um vestido semelhante a um preço mais acessível. A formatura estava próxima e enquanto suas amigas pensavam apenas no vestibular e no primeiro emprego ela preocupava-se realmente com seu futuro. E seu futuro resumia-se apenas a encontrar um marido que a salvasse.

sábado, 24 de abril de 2010

Tudo por um helicóptero

          Fim de tarde na BR-116. Uma multidão tenta retornar à casa enquanto outros tantos se dirigem às faculdades ou a locais de lazer. Passam-se 40 minutos e a distância percorrida é tão pequena que blasfemo por não ter tido a esplêndida idéia de ir trabalhar a pé.
          Ainda faltam cerca de 10km para o meu destino, mas a sinaleira fecha na minha frente pela terceira vez antes que eu possa me mexer. De onde estou não enxergo se houve um acidente ou se a culpa é de um ônibus que resolveu parar bem na frente do cruzamento.
          Dei sorte. Desta vez consegui passar, mas resolvi tentar outro caminho. Desisti do tradicional assim que vi o congestionamento na avenida. Olho o visor do relógio e faço os cálculos, chegando à conclusão que dará tempo de chegar para a aula na academia. Uma quadra, duas, três... pronto! Nessa eu viro.
          Imediatamente percebo que fiz besteira, mas não tenho mais como voltar atrás. Ainda se houvesse algum programa bom no rádio... O sinal vermelho parece me perseguir e sou obrigada a parar na esquina. olhei para o lado e descobri um boteco até que bem arrumadinho. Na parede interna diversos cartazes estavam colados com algum grau de organização. A maioria era ininteligível à distância, mas um deles chamou minha atenção. Com letras grandes, o seguinte pensamento: "O hoje é o ontem do amanhã". Fiquei imaginando o estado da bebedeira do sujeito quando criou esse magnífico e filosófico pensamento e consigo rir pela primeira vez nas últimas horas.
          Me pergunto pela quinquagésima vez "o que está acontecendo nessa cidade?". Estou habituada ao trânsito caótico do horário do rush, mas hoje parece ainda pior. A resposta demora algumas quadras. Então compreendo instintivamente a causa de tanta confusão. Um senhor passa entre os carros vendendo bandeiras de um certo time de futebol. Droga! Nem tinha me dado conta. Dia de jogo sempre triplica o movimento. Devia ter esperado mais tempo antes de sair. Refaço todos os caminhos alternativos na minha cabeça e opto por aquele que me parece o melhor.
          Será que no próximo dia em que houver jogo alguém pode me emprestar um helicóptero?

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Diploma

          Após 2 anos e 3 meses retornei ao hospital onde realizei minha residência para buscar o meu diploma. Algo dispensável quando se tem em mãos o título de especialista obtido mediante prova especifica.
          Interessante foi entrar na mesma sala onde assinei meu contrato em 2006 e falar com o mesmo secretário, sendo imediatamente reconhecida e, como se isso não bastasse, chamada pelo nome. Solicitei meu diploma e em menos de um minuto ele retornou com o envelope sem perguntar nada alem do meu paradeiro atual. Lembrava inclusive meu sobrenome.
          Fica a dúvida
          Fui uma residente exemplar ou causei tantos problemas que dificilmente conseguirão me esquecer?

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O tempo e o preconceito

Patrícia estava no seu consultório. Psicóloga formada há cinco anos, pós-graduação recém terminada, milhares de planos na cabeça. Não havia motivos para reclamar. As coisas estavam realmente indo bem. Aproveitou a falta de um paciente e desceu para tomar um café. Pediu o de sempre, capuccino com canela, mas desta vez demorou mais que o habitual para recebê-lo. Funcionário novo sempre se atrapalha, pensou, e abriu uma revista.


“Seu café, senhora.” – um rapazote estava colocando ao lado da xícara um cestinho com açúcar e adoçante. – “Desculpa a demora.” Patrícia sorriu. O sorriso não foi correspondido. A rápida análise identificou um novo garçom magrelo. Não teria mais do que vinte e poucos anos. A perfeita nervosia do primeiro dia: insegurança associada à vontade de agradar ao cliente e ao chefe.

Terminou o café, deixou o pagamento sobre a mesa e saiu. A visão de um casal atravessando a rua com um carrinho de bebê chamou sua atenção. Era o seu ex-namorado. Sorriu. Estava feliz por não ter sentido ciúmes. Tinha vencido o trauma de ter sido deixada praticamente no altar. Tudo bem, não foi assim tão perto da data, nem tinham sequer entregue os convites.

Os dias se passaram sem grandes novidades até que um dia Patrícia chegou ao café muito de mal humor. Um vazamento no banheiro tinha provocado uma infiltração, destruindo metade da parede de gesso. O hidráulico, embora chamado cinco vezes, ainda não tinha dado sinal de vida. Reclamou disso até para o garçom, que para a sua surpresa se ofereceu para consertar o estrago. “Trabalhei dois anos numa oficina. Sei fazer um pouco de tudo.”

Patrícia estranhou, mas resolveu confiar. Precisava arrumar o banheiro. Combinaram para depois do expediente. Às 18 horas, Daniel saiu do trabalho e se dirigiu ao consultório de Patrícia. Enquanto ele consertava o vazamento começou a puxar assunto. Assunto sério e não bobagens como Patrícia poderia imaginar. Oitavo filho no total, mas o primeiro com o quinto marido da mãe. Alguns irmãos drogados. Mas ele tinha um sonho: estudar administração. “Estou estudando à noite. Tenho que trabalhar para pagar o cursinho e ajudar em casa. Minha mãe tá desempregada.” – disse ele enxugando o rosto suado na camisa que acabara de tirar.

Os olhos de Patrícia não acreditaram no que estavam vendo. Daniel de magrelo não tinha nada. Um corpo de curvas tão bem definidas que poderia ter saído de uma academia ou de uma revista, m as jamais de uma cafeteria. Virou as costas e saiu. Melhor nem olhar para não sentir vontade. Havia perdido a conta do tempo em que estava solteira. Talvez, se o nível não fosse tão diferente ela pudesse ter continuado aquela conversa, mas, sabendo do seu desejo, preferiu se trancar no consultório e aguardar que ele terminasse o conserto.

Hora do pagamento. Seus olhos se cruzaram pela primeira vez. Castanhos claros, mas com algo tão penetrante que a perturbava. Entregou a nota, agradeceu o trabalho e se despediu. Ficou olhando enquanto ele se afastava e chamava o elevador.

No dia seguinte foi à cafeteria e fez questão de elogiar o trabalho. Percebeu o olhar de Daniel na sua direção por trás do balcão. Sem dúvida ele a encarava. Ela sabia que o desejava. Prendeu-se à realidade: eram de mundos diferentes demais. Suspirou e saiu, sonhando com aquele corpo tocando o seu. Agradeceu a viagem do dia seguinte para um congresso em Porto de Galinhas. Precisava se divertir, beijar, conhecer novas pessoas. Ao menos era isso que ela repetia a si mesma.

“O que vai querer hoje?” A voz já era conhecida, assim como as mãos que entregaram o cardápio. Mas, para sua tristeza, não eram de Daniel. O que teria acontecido naqueles quinze dias em que esteve no nordeste? Férias? Despedido? Dia de folga? A curiosidade era tão grande quanto a vontade de vê-lo. Sentia sua falta. Os dias se passaram e a vontade cresceu embora racionalmente soubesse que não deveria se permitir esse tipo de pensamento.

Após três meses da sua ausência, Patrícia começou a esquecê-lo. Seu orgulho jamais permitiu que ela pedisse seu paradeiro. Assim seria melhor para todos. Aceitou o pedido de namoro de um advogado um pouco mais velho do que ela, boa pinta e dono de um conhecido escritório. Após dois anos de um relacionamento morno decidiram se casar.

Um filho e muitas brigas e traições depois, Patrícia pediu o divórcio. Não tinha mais nada. Voltou a morar com os pais e gastava tudo o que tinha e o que não tinha para manter o filho numa escola de qualidade. Voltou a trabalhar em turno integral e aos poucos as coisas foram se normalizando.

Cinco e meia da tarde, quase fim do expediente. Último paciente marcado. Sentado na sala de espera, um homem desconhecido. Paciente novo. Parecia ter por volta de 30 anos e estava bem vestido. Provavelmente um executivo, encaminhado pela própria empresa devido a dificuldade de interação social como tantos outros.

O homem se levantou estendendo a mão para cumprimentar, mas não disse seu nome. Entraram na sala e sentaram. Durante a conversa que se seguiu, Patrícia compreendeu, e se decepcionou com ela mesma. Até aquele momento não havia se dado conta do quanto era preconceituosa. Ela, no fundo, nunca acreditara que uma pessoa saída de uma favela poderia subir e vencer por seus próprios méritos. Ele não se resignou com a vida que tinha e foi atrás dos seus objetivos. Lutou e venceu, alcançou seu sonho. Um sonho no qual ela poderia ter sido incluída. Um sonho do qual sempre quisera participar.

No momento em que compreendeu que Patrícia já o identificara, levantou e se despediu. Patrícia viu pela segunda vez o homem que ela tanto desejou sair por aquela porta, mas não podia fazer nada. Sentiu uma punhalada no peito. Algo deveria ser feito. Precisava criar coragem. O elevador chegou e Daniel entrou, mas antes que a porta se fechasse completamente ela apertou o botão. Daniel a fitou, curioso.

Patrícia respirou fundo e falou: “Daniel, será que podíamos sair um dia desses?”. Olhou para o chão, esperando receber como resposta um não. Nada seria mais justo. Daniel deu um passo à frente, levantou seu rosto, olhou-a nos olhos e a beijou.

Palavras Cruzadas

E atire a primeira pedra quem nunca ouviu nada igual...


Domingo de manhã, numa casa qualquer, de um bairro qualquer.

- Me passa o jornal?

- Que jornal?

- Esse que tu tá lendo!

- Ah! Mas esse eu to lendo, pega o de ontem.

- O de ontem eu já li. Então me passa só uma parte.

- Que parte? – Sempre sem tirar o olho da folha.

- A das palavras cruzadas.

Neste momento ouve-se um ruído de folhas sendo manuseadas e o guri passa a folha ao pai.

- Cadê a caneta? Ah... tá aqui! Não, essa tá sem tinta! Ana! (Gritando, porque a Ana tá no andar de cima tentando acessar a internet.)

- Quê?

- Me traz uma caneta.

- Prá que?

- Essa aqui tá sem tinta.

- Tá. Peraí que já desço.

Alguns minutos depois desce a guria com a caneta, uma bic azul com a tampa mordida. Imediatamente o pai faz um risco no meio da reportagem de uma banda famosa só para testar a tinta e começa a preencher as resposta. O silêncio toma conta da sala por 30 longos segundos.

- Nunca vi Kosovo com “C”. – Reclama o filho, que trinta segundos antes havia largado o jornal numa poltrona e agora espichava o pescoço na tentativa de ver o jogo e identificar possíveis erros.

- Ah! Que coisa! Não te perguntei nada. – Respondeu o pai já rabiscando um “K” por cima do “C”.

Mais 20 segundos de silêncio.

- Então, tu que és metido a sabichão, me diz a resposta dessa aqui. Anúncio de casamento lido na igreja.

- Quantas letras?

- Ué? Tu acabaste de te casar e não sabes?

- Ah, mas...

- E qual é o efeito do curare sobre o organismo?

- Imobilizar! – Grita a filha sem desgrudar do jogo de paciência no computador.

- Não... Letal.

- E essa aqui? Condescendente?

- Com descendente? É uma pessoa que tem filhos!

- Hahaha! É verdade! Mas sério, condescendente, 11 letras, termina com TE.

- Deve ter algo errado! Nenhuma palavra da língua portuguesa termina com uma consoante.

- Não! (gritando) É “T”-“E”.

- Ah, tá. Não sei o que é.

- Vou completar as outras prá ver se descubro. Cantora de Romaria.

- Elis! (Falam em coro os dois filhos, satisfeitíssimos por saberem a resposta)

- Elis?

- Elis Regina.

- Ué? Como é que vocês dois conhecem a Elis Regina? Ela é do meu tempo e já morreu.

O pai começa a cantar alguns versos desafinados da canção em questão até se deparar com uma que ela sabe a resposta e, por isso mesmo prefere dizê-la em voz alta:

- Madri!

- Como?

- Madri. A capital da Espanha.

- Sim, mas essa é fácil.

- Alvorada...

- Não pode ser Cachoeirinha?

- Alvorada, matina. E mal em inglês? Como é?

- Mal com “L” ou mau com “U”?

- Mal (acentuando o “L” para não deixar dúvidas.

- Evil.

- Como que escreve?

- E – V – I – L

- O nome... hmmm... sua esposa virou sal... não era Ló?

- Sim.

- Presta atenção: sua esposa virou sal, o nome do cara não é Ló?

- Era sim.

- Mas não cabe!

- Como não?

- Tem três letras!

- Então...

- Não era Ló, o nome do cara que a esposa virou sal?

- Sim! (já sem paciência) Lot! L – O – T.

- Ah! Termina com “T”. Agora sim! Complacente!

- Como?

- Condescendente, complacente.

Neste momento a filha, cansada de jogar paciência e frustrada por não conseguir acessar a internet decide descer e se juntar a eles. Já chega fazendo uma pergunta.

- Já que vocês estão falando da Bíblia: qual é a diferença entre Pilatos e Pilates?

O irmão responde, enquanto o pai continua preenchendo freneticamente as últimas respostas.

- Até onde eu sei os dois eram judeus.

- Eu perguntei a diferença e não a semelhança!

- Ah! Deixa de ser boba! Fica inventando coisa! Agora só falta dizer que foi Herodes quem construiu o Colosso de Rodes. (enrolando o “R”, para o som ficar mais parecido com o nome do Herodes)

- Colosso de que?

- Colosso de Rodes.

- Nunca ouvi falar.

- Colosso de Rodes. Uma das sete maravilhas do mundo, junto com os jardins de Alexandria.

O pai resolve entrar na conversa:

- Da babilônia! Os jardins suspensos eram na Babilônia. Em Alexandria tinha uma biblioteca que pegou fogo, li na veja da semana passada.

- A Babilônia é onde vivem os babuínos?

- Beduínos. Babuínos são macacos. Não sei por que eu gasto dinheiro com essa escola de vocês. Não ensinam mais nada?

- Ah, pai! Fala sério! Teve aquela votação, lembra? Eu votei no Cristo Redentor prá ser uma das maravilhas do mundo e não tinha essa opção de jardins da Babilônia.

- Terminei! Acertei tudo. Vamos almoçar.

Os três se levantaram e foram para a cozinha, onde o cheirinho da carne de panela já tomava conta do ar.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Aceito sugestõs de título

Saí da fábrica naquela sexta-feira chuvosa e fui direto ao Quincas. Sentei na mesma mesa de sempre e, como de costume, pedi uma batida enquanto esperava minha janta. Raramente deixei de aparecer por lá nos últimos 3 anos. Uma rotina solitária. Gostava de ir lá porque sabia que seria atendida com prioridade. Os garçons já me conheciam e já não me faziam perguntas. Aproveitava o tempo para refletir e estava tão absorta nos meus pensamentos que nem percebi a chegada daquela mulher.


Ela parou na minha frente e eu olhei: alta, loira, olhos escuros, vestida conforme a moda. Tão igual a tantas outras da região alemã onde vivo, mas tive certeza: não a conhecia. Sempre fui boa fisionomista, talvez esse seja meu único talento. Continuei observando enquanto ela, sem dizer ump palavra, puxava a cadeira em frente a minha para sentar. Puxei instintivamente o copo, como se quisesse me proteger.

- Ele me falou. – disse ela de repente sem nem mesmo se apresentar.

Eu a olhei, desconfiada. Não entendia o que aquela desconhecida fazia ali, na minha mesa, começando uma conversa por uma frase que parecia pertencer ao segundo capítulo de uma história. Talvez ela tivesse se enganado, me confundido. Bebi um grande gole do meu sex on the beach enquanto pensava a respeito. No final questionei a estranha:

- Sobre o que?

- Sobre o que aconteceu no início do verão.

Estremeci. Não poderia ser outra coisa. Cassio. O único homem com quem eu me envolvera desde minha mudança para Blumenau há 3 anos. Odiava a cidade e estava começando a odiar o trabalho quando ele surgiu como um foco de luz no fim do túnel. Eu me apaixonei rápido demais e quando descobri a verdade pensei em desistir de tudo e fugir sem rumo.

- Eu não sabia da tua existência. – respondi sem sorrir e sem olhar na sua direção. Mantive a cabeça baixa, mas a resposta veio rápido demais.

- Tudo bem, também tive meus casinhos quando estava longe.

Olhei para ela tentando compreender como ela podia ser tão fria. Ela nunca conseguiria me entender. Aquelas palavras tinham soado tão indiferentes, como se o relacionamento em questão não valesse nada. Nunca fui mulher de roubar homem de outra. Até o início deste ano nunca havia me envolvido com homens comprometidos. Uma questão de princípios.

-Isso não reduz a minha culpa.

- E a tua culpa não reduz a minha. Meu nome é Luciana. – e estendeu a mão na minha direção.

Estranho... Ela não está aqui para brigar. – Clarissa. O que queres de mim?

- Alguns minutos da tua atenção. Tenho uma proposta.

Hein?!? A conversa estava se tornando absurda. Proposta? Algo me soava mal, mas nesse momento eu precisava saber. Luciana pareceu compreender minha aflição.

-Não estamos mais juntos.

- Minha culpa?

- Não. Se alguém tem culpa nessa história sou eu.

- Como assim?

- Eu pedi que ele te procurasse. O resto tu sabes melhor que eu.

Ai, meu São João do Passa Quatro. Será que eu bebi demais? Que zonzeira é essa dentro da minha cabeça? Eu não estava entendendo nada. Fiquei sem palavras, olhando aquela pessoa na minha frente sem conseguir entender onde ela queria chegar. Minha sorte foi que ela recomeçou a conversa:

- Estou montando um restaurante. Bom, na verdade, meu noivo está montando um restaurante e está precisando de uma nutricionista.

- E por que eu? Quem me indicou?

- Paulo.

Paulo? De onde vinha essa agora? Quantos milhões de Paulos existem no mundo? E de todos eles, quantas centenas eu conheço? Só Paulo... definitivamente seria impossível descobrir.

- Paulo Roberto, Teu ex-namorado de Lages.

- Como?

A angústia apertou ainda mais dentro de mim. Nosso rompimento foi o motivo da mudança. Mas como ela poderia conhecê-lo? Que coisa estranha. Éramos noivos e ele nunca citou o nome dela.

- Paulo... – murmurei ainda incrédula e segui com meus pensamentos. Eu desapareci para tentar esquecê-lo e agora ele reaparece? O que ele pode querer de mim a essa altura? Ter arruinado a minha vida e meus planos não foi o suficiente? Nunca imaginei que assumir as empresas do pai teria um efeito tão prejudicial a alguém. Ele tinha mudado tanto... Fechei a cara. Não queria falar disso. Muito menos com uma estranha. Ela interrompeu minha linha de pensamento:

- Já te falei que a culpada sou eu. Eu mandei o Cássio te procurar. Ele se envolveu de verdade, se apaixonou. Ele foi honesto, terminou o namoro quando retornei, me contou tudo.

- Tu não me pareces chateada.

- Sem ressentimentos.

- Por que?

- No fundo eu desejava isso.

- Isso o que?

- Que ele me poupasse o trabalho de terminar.

- Alguma explicação plausível?

- Sim, mas ele não sabe.

- Eu também não. E, pelo visto, nunca saberei. Talvez nem me interesse.

- Mas deveria.

- Me dê uma razão.

- Paulo e eu vamos nos casar.

- Não estamos juntos há 3 anos. Esse tipo de coisa não é da minha conta. Além disso...

- Estamos juntos há 4 anos. Ou tu achas que a fábrica teria te contratado assim tão facilmente? Eu queria que tu te afastasses para que ele fosse só meu, então falei com meu tio.

- Quer me dar um tapa na cara também? Vai doer menos.

- Calma. Eu gostaria que vocês fossem.

- Vocês?

- Tu e Cássio.

- Affff.... Onde?

- Trabalhar no restaurante.

- Era só o que me faltava.

Depois de roubar a pessoa que eu amava e me jogar num emprego ridículo agora ela quer não apenas que eu mantenha seu ex-namorado longe como também quer que eu veja todos eles diariamente? Tive vontade de vomitar.

- Se não quiser ir tudo bem. Arrumarei outra pessoa. Mas gostaria que tu desses uma segunda chance pro Cássio.

- Prá que tudo isso? Eu não tive uma segunda chance com o Paulo.

- Eu concordei em dividi-lo contigo por 1 ano. Quando cansei da situação e fui embora ele veio atrás. Mas eu me fiz de louca, fiz ele voltar e terminar contigo. Foi o que ele fez. Terminou o namoro contigo e veio me buscar. Mas minha condição é que tu fosses embora. Não queria saber de concorrência ou recaídas.

- Então, aceitas?

- O que?

- O trabalho?

- Não. Não sou adepta de swing.

- É uma pena. Seria uma grande oportunidade.

Luciana virou e foi embora. Eu fiquei ali com cara de paisagem, olhando os tijolos da parede. Meu prato havia chegado. As batatas assadas e o frango pareciam saborosos, mas eu havia perdido a fome. Cássio estaria participando deste teatro ridículo? Melhor ligar.

- A Luciana, tua ex, me procurou. Podes me explicar o que está acontecendo?

- Da minha parte nada em especial. Terminei o namoro e ela nem reclamou. Achei estranho, mas sabe como ela é, tem suas manias, seus caprichos. Provavelmente quis sair por cima. Até me convidou prá administrar um restaurante, mas não aceitei. Pobre de quem aceitar o emprego, até hoje não conheci ninguém que gaste mais dinheiro com bobagem que ela.

- Interessante. Não aceitaste o emprego, mas disseste prá ela me pedir prá te dar uma segunda chance e me oferecer um trabalho no restaurante do meu ex?

- Como? Eu jamais pediria isso. E como assim do teu ex?

- Ué? A Luciana vai se casar com o Paulo, meu ex. Ela não te contou esse detalhe?

- Casar? Mas a Luciana nunca quis casar. Tentei diversas vezes, mas ela nunca aceitou.

- Sim. Ela nunca quis casar... contigo. Está há 4 anos com o Paulo.

Outra voz gritou do fundo da sala:

- Acho que a tua Luciana e a minha Luciana são a mesma pessoa.

Nem tive tempo de perceber o que tinha acontecido e aquele barulho irritante da linha telefônica começou a soar. Ele desligou o telefone na minha cara.

Mas naquela casa outra discussão havia começado, desta vez entre Cássio e Paulo.

- O que? Seu desgraçado...

- Eu não! Desgraçada é essa louca! Eu também fui enganado! E o pior é que iríamos nos casar! E eu achando que seria ótimo vir morar aqui, queria realizar o sonho dela de ter um restaurante chique. Sempre tive tanta pena da família dela, tão pobres, cheios de dívidas. Ajudei tantas vezes.

-Hahaha. Pobres? Dívidas? Só se for dívida com o cartão de crédito para comprar seus luxos. Brincos de ouro, lojas de grife e dois carros. Foi esse o destino do teu dinheiro.

- Tá brincando! Não é possível.

- Tu não sabias de nada? Nem de mim?

- Não. E provavelmente ela nem desconfiava que pudéssemos ser primos. Há quantos anos não nos víamos? Vinte?

- É, por aí.

- Precisamos fazer alguma coisa. Liga prá Clarissa e esclarece toda a situação. Depois vamos juntos até a casa da Luciana. Casa não, apartamento. O apartamento que eu comprei prá ela. Preciso terminar com essa farsa!

Uma hora depois batemos na casa dela. Era naquele prédio chique perto do centro. Eu nunca tinha entrado ali antes. É daqueles prédios imponentes onde até o porteiro parece mais importante do que a pessoa que chega para visitar um morador. Entramos no elevador e eu comecei a suar. Esta história de ser testemunha não parecia uma boa idéia. Mas eu já estava ali e deveria ficar até o fim.

Ela atendeu enrolada numa toalha como naqueles filmes americanos. Estava sorrindo, mas seus lábios logo murcharam, dando lugar a uma expressão amedrontada. Agora ela mordia os lábios. Paulo foi direto e cruel.

- Vim terminar o noivado. Acho que não é preciso explicar nada, não é mesmo?

- Mas Paulo! Não faz isso comigo! Eu te amo! Sempre te amei! Fiz tudo isso por amor! Tu também me amas!

- Desculpa, mas a mulher que eu pensei que amava não existe!

- Mas e todos os nossos planos? Nossa viagem para o Taiti?

- Quanto aos teus planos eu não posso dizer. Eu decidi montar restaurante junto com duas pessoas nas quais posso confiar.

- Ah, sim. Falando nisso, o que esses dois estão fazendo aqui contigo? Principalmente essazinha aí, que se não fosse por mim estaria morta de fome hoje.

- O diabo ensina a fazer, mas não ensina a esconder. O Cássio é meu primo e “essazinha aí” se chama Clarissa e é muito talentosa. Uma pena ter perdido tanto tempo naquela fábrica. E antes que eu me esqueça, este apartamento ainda está em meu nome, portanto junta as tuas coisas e vai embora.

- Mas vou viver de que? Não trabalho. Onde vou morar?

- Com teus pais. Já descobri que eles não moram debaixo da ponte como parecia.

- Mas quem vai pagar minhas coisas?

- Teu talento sempre foi enganar aos homens, não? Logo, logo encontrarás outro babaca que acredite nas tuas baboseiras.

Dois meses depois nós três abrimos as portas do bistrô Il veliero bianco, especializado em comida contemporânea. Foi um verdadeiro sucesso. Um dia eu estava conversando com alguns clientes quando vi um casal pedir uma mesa. Ele, um conhecido empresário bem sucedido da região. Ela, Luciana, firme no papel de namorada apaixonada e com um anel de brilhantes na mão direita. Quando ela me viu ficou visivelmente sem graça. Enquanto se dirigiram à mesa pude ver alguns flagrantes de olhares furtivos para outros homens presentes no local. Resolvi chamar os outros na cozinha. Paulo se limitou a balançar a cabeça e dizer:

- Olhem do que eu me livrei.

Cássio e eu nos abraçamos e rimos:

- Aquela ali jamais teria conserto.