Saí da fábrica naquela sexta-feira chuvosa e fui direto ao Quincas. Sentei na mesma mesa de sempre e, como de costume, pedi uma batida enquanto esperava minha janta. Raramente deixei de aparecer por lá nos últimos 3 anos. Uma rotina solitária. Gostava de ir lá porque sabia que seria atendida com prioridade. Os garçons já me conheciam e já não me faziam perguntas. Aproveitava o tempo para refletir e estava tão absorta nos meus pensamentos que nem percebi a chegada daquela mulher.
Ela parou na minha frente e eu olhei: alta, loira, olhos escuros, vestida conforme a moda. Tão igual a tantas outras da região alemã onde vivo, mas tive certeza: não a conhecia. Sempre fui boa fisionomista, talvez esse seja meu único talento. Continuei observando enquanto ela, sem dizer ump palavra, puxava a cadeira em frente a minha para sentar. Puxei instintivamente o copo, como se quisesse me proteger.
- Ele me falou. – disse ela de repente sem nem mesmo se apresentar.
Eu a olhei, desconfiada. Não entendia o que aquela desconhecida fazia ali, na minha mesa, começando uma conversa por uma frase que parecia pertencer ao segundo capítulo de uma história. Talvez ela tivesse se enganado, me confundido. Bebi um grande gole do meu sex on the beach enquanto pensava a respeito. No final questionei a estranha:
- Sobre o que?
- Sobre o que aconteceu no início do verão.
Estremeci. Não poderia ser outra coisa. Cassio. O único homem com quem eu me envolvera desde minha mudança para Blumenau há 3 anos. Odiava a cidade e estava começando a odiar o trabalho quando ele surgiu como um foco de luz no fim do túnel. Eu me apaixonei rápido demais e quando descobri a verdade pensei em desistir de tudo e fugir sem rumo.
- Eu não sabia da tua existência. – respondi sem sorrir e sem olhar na sua direção. Mantive a cabeça baixa, mas a resposta veio rápido demais.
- Tudo bem, também tive meus casinhos quando estava longe.
Olhei para ela tentando compreender como ela podia ser tão fria. Ela nunca conseguiria me entender. Aquelas palavras tinham soado tão indiferentes, como se o relacionamento em questão não valesse nada. Nunca fui mulher de roubar homem de outra. Até o início deste ano nunca havia me envolvido com homens comprometidos. Uma questão de princípios.
-Isso não reduz a minha culpa.
- E a tua culpa não reduz a minha. Meu nome é Luciana. – e estendeu a mão na minha direção.
Estranho... Ela não está aqui para brigar. – Clarissa. O que queres de mim?
- Alguns minutos da tua atenção. Tenho uma proposta.
Hein?!? A conversa estava se tornando absurda. Proposta? Algo me soava mal, mas nesse momento eu precisava saber. Luciana pareceu compreender minha aflição.
-Não estamos mais juntos.
- Minha culpa?
- Não. Se alguém tem culpa nessa história sou eu.
- Como assim?
- Eu pedi que ele te procurasse. O resto tu sabes melhor que eu.
Ai, meu São João do Passa Quatro. Será que eu bebi demais? Que zonzeira é essa dentro da minha cabeça? Eu não estava entendendo nada. Fiquei sem palavras, olhando aquela pessoa na minha frente sem conseguir entender onde ela queria chegar. Minha sorte foi que ela recomeçou a conversa:
- Estou montando um restaurante. Bom, na verdade, meu noivo está montando um restaurante e está precisando de uma nutricionista.
- E por que eu? Quem me indicou?
- Paulo.
Paulo? De onde vinha essa agora? Quantos milhões de Paulos existem no mundo? E de todos eles, quantas centenas eu conheço? Só Paulo... definitivamente seria impossível descobrir.
- Paulo Roberto, Teu ex-namorado de Lages.
- Como?
A angústia apertou ainda mais dentro de mim. Nosso rompimento foi o motivo da mudança. Mas como ela poderia conhecê-lo? Que coisa estranha. Éramos noivos e ele nunca citou o nome dela.
- Paulo... – murmurei ainda incrédula e segui com meus pensamentos. Eu desapareci para tentar esquecê-lo e agora ele reaparece? O que ele pode querer de mim a essa altura? Ter arruinado a minha vida e meus planos não foi o suficiente? Nunca imaginei que assumir as empresas do pai teria um efeito tão prejudicial a alguém. Ele tinha mudado tanto... Fechei a cara. Não queria falar disso. Muito menos com uma estranha. Ela interrompeu minha linha de pensamento:
- Já te falei que a culpada sou eu. Eu mandei o Cássio te procurar. Ele se envolveu de verdade, se apaixonou. Ele foi honesto, terminou o namoro quando retornei, me contou tudo.
- Tu não me pareces chateada.
- Sem ressentimentos.
- Por que?
- No fundo eu desejava isso.
- Isso o que?
- Que ele me poupasse o trabalho de terminar.
- Alguma explicação plausível?
- Sim, mas ele não sabe.
- Eu também não. E, pelo visto, nunca saberei. Talvez nem me interesse.
- Mas deveria.
- Me dê uma razão.
- Paulo e eu vamos nos casar.
- Não estamos juntos há 3 anos. Esse tipo de coisa não é da minha conta. Além disso...
- Estamos juntos há 4 anos. Ou tu achas que a fábrica teria te contratado assim tão facilmente? Eu queria que tu te afastasses para que ele fosse só meu, então falei com meu tio.
- Quer me dar um tapa na cara também? Vai doer menos.
- Calma. Eu gostaria que vocês fossem.
- Vocês?
- Tu e Cássio.
- Affff.... Onde?
- Trabalhar no restaurante.
- Era só o que me faltava.
Depois de roubar a pessoa que eu amava e me jogar num emprego ridículo agora ela quer não apenas que eu mantenha seu ex-namorado longe como também quer que eu veja todos eles diariamente? Tive vontade de vomitar.
- Se não quiser ir tudo bem. Arrumarei outra pessoa. Mas gostaria que tu desses uma segunda chance pro Cássio.
- Prá que tudo isso? Eu não tive uma segunda chance com o Paulo.
- Eu concordei em dividi-lo contigo por 1 ano. Quando cansei da situação e fui embora ele veio atrás. Mas eu me fiz de louca, fiz ele voltar e terminar contigo. Foi o que ele fez. Terminou o namoro contigo e veio me buscar. Mas minha condição é que tu fosses embora. Não queria saber de concorrência ou recaídas.
- Então, aceitas?
- O que?
- O trabalho?
- Não. Não sou adepta de swing.
- É uma pena. Seria uma grande oportunidade.
Luciana virou e foi embora. Eu fiquei ali com cara de paisagem, olhando os tijolos da parede. Meu prato havia chegado. As batatas assadas e o frango pareciam saborosos, mas eu havia perdido a fome. Cássio estaria participando deste teatro ridículo? Melhor ligar.
- A Luciana, tua ex, me procurou. Podes me explicar o que está acontecendo?
- Da minha parte nada em especial. Terminei o namoro e ela nem reclamou. Achei estranho, mas sabe como ela é, tem suas manias, seus caprichos. Provavelmente quis sair por cima. Até me convidou prá administrar um restaurante, mas não aceitei. Pobre de quem aceitar o emprego, até hoje não conheci ninguém que gaste mais dinheiro com bobagem que ela.
- Interessante. Não aceitaste o emprego, mas disseste prá ela me pedir prá te dar uma segunda chance e me oferecer um trabalho no restaurante do meu ex?
- Como? Eu jamais pediria isso. E como assim do teu ex?
- Ué? A Luciana vai se casar com o Paulo, meu ex. Ela não te contou esse detalhe?
- Casar? Mas a Luciana nunca quis casar. Tentei diversas vezes, mas ela nunca aceitou.
- Sim. Ela nunca quis casar... contigo. Está há 4 anos com o Paulo.
Outra voz gritou do fundo da sala:
- Acho que a tua Luciana e a minha Luciana são a mesma pessoa.
Nem tive tempo de perceber o que tinha acontecido e aquele barulho irritante da linha telefônica começou a soar. Ele desligou o telefone na minha cara.
Mas naquela casa outra discussão havia começado, desta vez entre Cássio e Paulo.
- O que? Seu desgraçado...
- Eu não! Desgraçada é essa louca! Eu também fui enganado! E o pior é que iríamos nos casar! E eu achando que seria ótimo vir morar aqui, queria realizar o sonho dela de ter um restaurante chique. Sempre tive tanta pena da família dela, tão pobres, cheios de dívidas. Ajudei tantas vezes.
-Hahaha. Pobres? Dívidas? Só se for dívida com o cartão de crédito para comprar seus luxos. Brincos de ouro, lojas de grife e dois carros. Foi esse o destino do teu dinheiro.
- Tá brincando! Não é possível.
- Tu não sabias de nada? Nem de mim?
- Não. E provavelmente ela nem desconfiava que pudéssemos ser primos. Há quantos anos não nos víamos? Vinte?
- É, por aí.
- Precisamos fazer alguma coisa. Liga prá Clarissa e esclarece toda a situação. Depois vamos juntos até a casa da Luciana. Casa não, apartamento. O apartamento que eu comprei prá ela. Preciso terminar com essa farsa!
Uma hora depois batemos na casa dela. Era naquele prédio chique perto do centro. Eu nunca tinha entrado ali antes. É daqueles prédios imponentes onde até o porteiro parece mais importante do que a pessoa que chega para visitar um morador. Entramos no elevador e eu comecei a suar. Esta história de ser testemunha não parecia uma boa idéia. Mas eu já estava ali e deveria ficar até o fim.
Ela atendeu enrolada numa toalha como naqueles filmes americanos. Estava sorrindo, mas seus lábios logo murcharam, dando lugar a uma expressão amedrontada. Agora ela mordia os lábios. Paulo foi direto e cruel.
- Vim terminar o noivado. Acho que não é preciso explicar nada, não é mesmo?
- Mas Paulo! Não faz isso comigo! Eu te amo! Sempre te amei! Fiz tudo isso por amor! Tu também me amas!
- Desculpa, mas a mulher que eu pensei que amava não existe!
- Mas e todos os nossos planos? Nossa viagem para o Taiti?
- Quanto aos teus planos eu não posso dizer. Eu decidi montar restaurante junto com duas pessoas nas quais posso confiar.
- Ah, sim. Falando nisso, o que esses dois estão fazendo aqui contigo? Principalmente essazinha aí, que se não fosse por mim estaria morta de fome hoje.
- O diabo ensina a fazer, mas não ensina a esconder. O Cássio é meu primo e “essazinha aí” se chama Clarissa e é muito talentosa. Uma pena ter perdido tanto tempo naquela fábrica. E antes que eu me esqueça, este apartamento ainda está em meu nome, portanto junta as tuas coisas e vai embora.
- Mas vou viver de que? Não trabalho. Onde vou morar?
- Com teus pais. Já descobri que eles não moram debaixo da ponte como parecia.
- Mas quem vai pagar minhas coisas?
- Teu talento sempre foi enganar aos homens, não? Logo, logo encontrarás outro babaca que acredite nas tuas baboseiras.
Dois meses depois nós três abrimos as portas do bistrô Il veliero bianco, especializado em comida contemporânea. Foi um verdadeiro sucesso. Um dia eu estava conversando com alguns clientes quando vi um casal pedir uma mesa. Ele, um conhecido empresário bem sucedido da região. Ela, Luciana, firme no papel de namorada apaixonada e com um anel de brilhantes na mão direita. Quando ela me viu ficou visivelmente sem graça. Enquanto se dirigiram à mesa pude ver alguns flagrantes de olhares furtivos para outros homens presentes no local. Resolvi chamar os outros na cozinha. Paulo se limitou a balançar a cabeça e dizer:
- Olhem do que eu me livrei.
Cássio e eu nos abraçamos e rimos:
- Aquela ali jamais teria conserto.