Patrícia estava no seu consultório. Psicóloga formada há cinco anos, pós-graduação recém terminada, milhares de planos na cabeça. Não havia motivos para reclamar. As coisas estavam realmente indo bem. Aproveitou a falta de um paciente e desceu para tomar um café. Pediu o de sempre, capuccino com canela, mas desta vez demorou mais que o habitual para recebê-lo. Funcionário novo sempre se atrapalha, pensou, e abriu uma revista.
“Seu café, senhora.” – um rapazote estava colocando ao lado da xícara um cestinho com açúcar e adoçante. – “Desculpa a demora.” Patrícia sorriu. O sorriso não foi correspondido. A rápida análise identificou um novo garçom magrelo. Não teria mais do que vinte e poucos anos. A perfeita nervosia do primeiro dia: insegurança associada à vontade de agradar ao cliente e ao chefe.
Terminou o café, deixou o pagamento sobre a mesa e saiu. A visão de um casal atravessando a rua com um carrinho de bebê chamou sua atenção. Era o seu ex-namorado. Sorriu. Estava feliz por não ter sentido ciúmes. Tinha vencido o trauma de ter sido deixada praticamente no altar. Tudo bem, não foi assim tão perto da data, nem tinham sequer entregue os convites.
Os dias se passaram sem grandes novidades até que um dia Patrícia chegou ao café muito de mal humor. Um vazamento no banheiro tinha provocado uma infiltração, destruindo metade da parede de gesso. O hidráulico, embora chamado cinco vezes, ainda não tinha dado sinal de vida. Reclamou disso até para o garçom, que para a sua surpresa se ofereceu para consertar o estrago. “Trabalhei dois anos numa oficina. Sei fazer um pouco de tudo.”
Patrícia estranhou, mas resolveu confiar. Precisava arrumar o banheiro. Combinaram para depois do expediente. Às 18 horas, Daniel saiu do trabalho e se dirigiu ao consultório de Patrícia. Enquanto ele consertava o vazamento começou a puxar assunto. Assunto sério e não bobagens como Patrícia poderia imaginar. Oitavo filho no total, mas o primeiro com o quinto marido da mãe. Alguns irmãos drogados. Mas ele tinha um sonho: estudar administração. “Estou estudando à noite. Tenho que trabalhar para pagar o cursinho e ajudar em casa. Minha mãe tá desempregada.” – disse ele enxugando o rosto suado na camisa que acabara de tirar.
Os olhos de Patrícia não acreditaram no que estavam vendo. Daniel de magrelo não tinha nada. Um corpo de curvas tão bem definidas que poderia ter saído de uma academia ou de uma revista, m as jamais de uma cafeteria. Virou as costas e saiu. Melhor nem olhar para não sentir vontade. Havia perdido a conta do tempo em que estava solteira. Talvez, se o nível não fosse tão diferente ela pudesse ter continuado aquela conversa, mas, sabendo do seu desejo, preferiu se trancar no consultório e aguardar que ele terminasse o conserto.
Hora do pagamento. Seus olhos se cruzaram pela primeira vez. Castanhos claros, mas com algo tão penetrante que a perturbava. Entregou a nota, agradeceu o trabalho e se despediu. Ficou olhando enquanto ele se afastava e chamava o elevador.
No dia seguinte foi à cafeteria e fez questão de elogiar o trabalho. Percebeu o olhar de Daniel na sua direção por trás do balcão. Sem dúvida ele a encarava. Ela sabia que o desejava. Prendeu-se à realidade: eram de mundos diferentes demais. Suspirou e saiu, sonhando com aquele corpo tocando o seu. Agradeceu a viagem do dia seguinte para um congresso em Porto de Galinhas. Precisava se divertir, beijar, conhecer novas pessoas. Ao menos era isso que ela repetia a si mesma.
“O que vai querer hoje?” A voz já era conhecida, assim como as mãos que entregaram o cardápio. Mas, para sua tristeza, não eram de Daniel. O que teria acontecido naqueles quinze dias em que esteve no nordeste? Férias? Despedido? Dia de folga? A curiosidade era tão grande quanto a vontade de vê-lo. Sentia sua falta. Os dias se passaram e a vontade cresceu embora racionalmente soubesse que não deveria se permitir esse tipo de pensamento.
Após três meses da sua ausência, Patrícia começou a esquecê-lo. Seu orgulho jamais permitiu que ela pedisse seu paradeiro. Assim seria melhor para todos. Aceitou o pedido de namoro de um advogado um pouco mais velho do que ela, boa pinta e dono de um conhecido escritório. Após dois anos de um relacionamento morno decidiram se casar.
Um filho e muitas brigas e traições depois, Patrícia pediu o divórcio. Não tinha mais nada. Voltou a morar com os pais e gastava tudo o que tinha e o que não tinha para manter o filho numa escola de qualidade. Voltou a trabalhar em turno integral e aos poucos as coisas foram se normalizando.
Cinco e meia da tarde, quase fim do expediente. Último paciente marcado. Sentado na sala de espera, um homem desconhecido. Paciente novo. Parecia ter por volta de 30 anos e estava bem vestido. Provavelmente um executivo, encaminhado pela própria empresa devido a dificuldade de interação social como tantos outros.
O homem se levantou estendendo a mão para cumprimentar, mas não disse seu nome. Entraram na sala e sentaram. Durante a conversa que se seguiu, Patrícia compreendeu, e se decepcionou com ela mesma. Até aquele momento não havia se dado conta do quanto era preconceituosa. Ela, no fundo, nunca acreditara que uma pessoa saída de uma favela poderia subir e vencer por seus próprios méritos. Ele não se resignou com a vida que tinha e foi atrás dos seus objetivos. Lutou e venceu, alcançou seu sonho. Um sonho no qual ela poderia ter sido incluída. Um sonho do qual sempre quisera participar.
No momento em que compreendeu que Patrícia já o identificara, levantou e se despediu. Patrícia viu pela segunda vez o homem que ela tanto desejou sair por aquela porta, mas não podia fazer nada. Sentiu uma punhalada no peito. Algo deveria ser feito. Precisava criar coragem. O elevador chegou e Daniel entrou, mas antes que a porta se fechasse completamente ela apertou o botão. Daniel a fitou, curioso.
Patrícia respirou fundo e falou: “Daniel, será que podíamos sair um dia desses?”. Olhou para o chão, esperando receber como resposta um não. Nada seria mais justo. Daniel deu um passo à frente, levantou seu rosto, olhou-a nos olhos e a beijou.
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Há 15 anos
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