Dona Marieta não titubeou ao ver Rosângela esperando um táxi na esquina e foi logo puxando assunto. Amigas há tanto tempo quanto a memória as permitia recordar, nunca perdem a oportunidade de se vangloriar dos feitos dos netos ou falar mal das vizinhas. “Pois é comadre, aquela dona da casa verde trocou de marido de novo...” “Essas menina de hoje não sabe mais segurá marido não...” “E a Edilene, vai ganhar quando?” “Tá de 5 mês, é menina. Jéssica ou Vitória. Ainda não decidiu.”
Se a conversa das duas fluía solta, o mesmo não acontecia com o tráfego por ali. Dois fiscais de trânsito conferiam suas papeletas enquanto as sinaleiras cumpriam seu papel, coordenando o intenso fluxo de veículos naquele cruzamento bem em frente ao hospital municipal.
Em frente ao sinal vermelho uma longa fila já estava formada. Em cada carro rostos cansados do longo dia de trabalho. No primeiro deles, um corsa branco, Ricardo escutava seu CD preferido enquanto contava os minutos para chegar em casa. Quarenta e dois segundos depois o semáforo abriu. Ricardo engatou a primeira e arrancou. Ato reflexo: Donna Marieta, que até dois segundos antes estava com dificuldades para se despedir, vira-se repentinamente e começa a atravessar a rua sem sequer olhar para os lados. Hipnotizada pela seqüencia de faixas brancas e pretas aos seus pés, não foi capaz de perceber o quanto estava próxima do carro já em movimento.
Ágil, Ricardo pisou fundo no freio, mas sua mão, que rapidamente deslizou até a buzina vacilou. Estava na frente do hospital. A dúvida cresceu em milésimos de segundo. Buzinar ali naquele local e levar uma multa como havia acontecido semanas antes com seu amigo? Ou atropelar a velha e viver o resto dos seus dias com a consciência pesada? Não teve tempo de decidir. Virou rapidamente o volante e passou a menos de 20 centímetros dela. Essa havia sido por pouco.
Dez minutos depois Ricardo entrava no elevador rezando para sua esposa não estar com mais um dos seus desejos gestacionais indecifráveis e irrealizáveis quando foi surpreendido pelo seu próprio reflexo no espelho. Definitivamente uma herança paterna não muito agradável... Seus cabelos estavam desaparecendo com a mesma velocidade que seu pai desaparecera de sua vida anos antes. Infarto fulminante. “Foi stress. – Disse o médico na época.” Era preciso dar um fim nisso tudo.
Entrou em casa. Silêncio. Ótimo. Nem sequer tirou a chave da porta. Pegou papel e caneta, deixou um recado para Mariana e correu para o estádio ainda de terno. Então ele gritou e gritou e gritou... Como se aquele fosse seu time do coração. Noventa minutos depois, com o corpo suado, a roupa amassada e 10kg a menos na cabeça voltou para casa. Neste momento a calvície não importava e dona Marieta sequer existia... Mas de um coisa ele tinha certeza: poderia finalmente ter uma boa noite de sono.
Nenhum comentário:
Postar um comentário