quinta-feira, 5 de setembro de 2019

No balanço

Estava frio e nublado, mas eu queria conhecer a cidade, então saí caminhando sem rumo até encontrar uma praça. Gostei dali. Sentei e comecei a observar a cidade, as pessoas, o movimento das folhas nas árvores.
Já estava lá há quase uma hora quando vi...
Sobretudo preto, mãos no bolso, rosto levemente inclinado para baixo, cabelos encaracolados e um cachecol displicentemente jogado ao redor do pescoço.
A passos lentos ele descia a escadaria de pedra onde as pombas terminavam de comer as migalhas deixadas pouco antes por um um grupo de adolescentes barulhentos. Já não se ouvia as vozes altas ou o barulho das embalagens sendo rasgadas. apenas o leve murmurar do vento gelado do inverno quebrava o silêncio.
Sentada num balanço, eu segui seus passos com os olhos, imaginando quem seria, o que fazia, para onde ia. Certamente ele achou que passava despercebido. Teria alguém em casa esperando por ele com uma sopa quentinha?
Comecei a me balançar e o rangido das correntes deve ter chamado a sua atenção. ele levantou a cabeça e por dois segundos me olhou. Virei o rosto. eu não queria abrir nenhum canal de comunicação. Quando voltei a olhar, ele já seguia seu rumo.
Levantei e retirei da mochila os pincéis e as tintas. Ajeitei a tela e comecei a pintar. Finalmente eu tinha encontrado inspiração para mais um quadro.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Total white

Recebi o convite da festa com uma única observação: "total white".
Conversei com outros convidados e entre todos paira uma dúvida: quem em sã consciência inventa isso?
Branco?
Como os homens devem se vestir? De dentista ou pai de santo? Ou quem sabe um terno branco com chapéu e samba no pé?
E nós, mulheres então?
Quantas mulheres têm corpo perfeito, coragem ou auto-estima suficiente para vestir branco dos pés à cabeça e entrar se achando linda?
Eu, por exemplo, a única coisa "total white" que usei nos últimos anos foi uma pasta de dente. Sou colorida, não gosto de branco. Não existe paz de espírito num ambiente branco. Não existe paz diante do espelho numa roupa branca.
Abri o armário e depois de muito mexer para lá e para cá, consegui encontrar dois vestidos.
Provei o primeiro.
Puxa daqui, puxa dali, nossa! Deve ter encolhido uns 2 números! Sério que eu usava isso? OK, entrou. Me olhei no espelho e logo percebi que o comprimento dele estava um tanto quanto provocante demais (para não usar outro termo). Os velhos vão gostar... mas os mais jovens irão me olhar com aquela cara de "Nossa, que pessoa sem noção! Devia se olhar no espelho antes de vestir algo assim!". Definitivamente, este não me favoreceu. Saiu do corpo direto para a sacola de doação.
Olhei então para o segundo modelo e rezei para que servisse. Seria um inferno ter que ir ao shopping comprar um vestido branco para usar uma única vez. Nem adianta tentar me convencer de usar branco no ano novo. Os árabes usam branco o tempo todo e são os primeiros a acabar com a paz no planeta. Prefiro usar amarelo, rosa, azul, roxo, verde, não importa, desde que eu tenha na mão uma taça de algum bom espumante brut.
Voltando ao vestido.
Eu nem estava querendo muito. Apenas um modelo que valorizasse minhas curvas, que escondesse as gordurinhas localizadas (aquelas que a sociedade insiste que eu não deveria ter, mas que não me incomodam porque não definem quem sou e muito menos me impedem ser ser feliz).
Só queria um vestido no qual eu me sinta poderosa. Um vestido com o qual eu possa dançar sem me preocupar com a revelação pública daquilo que me julgo no direito de mostrar apenas no privado. Um vestido com o qual eu possa sentar, cruzar e descruzar as pernas sem puxar insistentemente a bainha para além dos limites de expansibilidade do tecido.
Coloquei o vestido, serviu, fui capaz de me sentar. É o suficiente, vai esse mesmo. O resto fica por minha conta. Nada que um saltão, um sorriso e uma boa postura não resolvam. Entrarei linda na festa.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Sexta-feira - 5 anos depois

Naquele ano a festa de final de ano da empresa precisava ser especial. 10 anos de muito trabalho sendo recompensados com o reconhecimento dos clientes. Ao invés da tradicional churrascaria, optamos por uma linda chácara.
As árvores, as cabanas com teto de sapê e a leve brisa convidavam para um mergulho na piscina naquele dia de verão onde o sol, impiedoso, não havia dado trégua até aquele momento.
Me aproximei da água carregando comigo apenas o mais importante: celular, toalha e protetor solar.
Minhas amigas ficaram no bar, me olhando de longe, balançando a cabeça e tomando seus drinks coloridos e super enfeitados. Eu já não estava no clima, queria apenas ficar com Cléber e, claro, um belo mergulho refrescante.
Estendi minha toalha na única das quatro espreguiçadeiras que estava livre e comecei a passar protetor solar.
Percebi que minhas amigas me olhavam espantadas. Continuei. Elas também. Continuaram a olhar e fofocar. Por fim, fizeram sinal para eu olhar o celular.
Mensagem nova: "Sua loka! Pára com isso! Não tá vendo que aquele cara do marketing não para de te olhar? Aquele pirralho doido..."
Olhei na direção delas furiosa.... "aquele pirralho"?
Me virei...
Sim, aquele pirralho estava lá, me olhando com aquele olhar que tanto me agradava, aquele sorriso que eu tanto gostava. Estava sendo cada vez mais difícil para nós esconder o quanto nos amávamos. Não queríamos que ninguém soubesse e no início foi tão fácil....Mas depois de tanto tempo juntos, o que eu mais queria era mostrar a todos como éramos felizes.
Ignorando o resto dos colegas fui até lá e pedi a Cleber que passasse protetor solar nas minhas costas. Sentei entre as pernas dele na espreguiçadeira de forma a conseguir olhar com o canto do olho para as minhas amigas.
Elas pareciam não acreditar no que viam e isso me divertia.
Enquanto ele passava o creme, me abraçava até que segurei suas mãos e seu abraço. Está cada vez mais difícil esconder, falei.
Ele apertou o abraço e deu um beijo na minha nuca, sussurrando: te amo!
Olhei para as minhas amigas e levantei.
- Vou buscar algo para beber.
Rapidamente uma das gurias se aproximou sem saber muito bem o que dizer. Aproveitei o silencio dela e falei:
- Que que foi?
- Podes me dizer o que te deu? Pedir pra ele passar protetor em ti?
- E daí?
- Tudo que ele queria... conseguir chegar perto de ti...
Suspirei e pedi dois chopes.
(Como se ele não tivesse tocado em mim antes...)
- Aline! Aquele cara é louco! E além disso é um piá, feio, desarrumado...
Deixei ela terminar a ladainha sem nem registrar as palavras enquanto eu esperava o garçom trazes nossos copos.
Por fim, peguei os copos, olhei pra ela e desabafei:
- Ele é louco, sim... por mim.... e eu por ele.
Minha amiga ficou perplexa... quase deixou cair a bebida que estava tomando.
Segui para a piscina, feliz e com a sensação única da liberdade.
Já não precisávamos mais disfarçar.
Não importava o que os outros pensassem, ninguém me fazia tão plena como ele.


Enxurrada

Encolhi-me num canto escuro da sala entre a mesa e a lareira. Uma tempestade se aproximava, sombria e assustadora. O vento uivava nas frestas das janelas. Um relâmpago cortou o céu, brilhante e mortal, atingindo uma velha árvore no jardim. A chuva sequer havia iniciado e já havia ao menos uma vítima.
Se o rio subisse novamente eu não teria para onde fugir. Minha casa escapara por pouco da última enchente e hoje, até mesmo o segundo andar me dava medo.
Um longo filme, composto por gritos, acenos de desespero e construções tragadas pela enxurrada parecia estar sendo projetado nas paredes ao meu redor. Agarrei-me o mais forte que pude ao antigo terço, herança de família que ganhei da minha avó ao completar 6 anos de idade.
Independente da minha vontade permaneci imóvel. O desespero contraía meus músculos e triturava meus ossos. Senti a água gelada escorrendo pelas frestas e tive certeza que jamais me salvaria.
Um baque surdo precedeu o vento, que invadiu subitamente a casa trazendo consigo um vulto desconhecido.
Nem olhei seu rosto enquanto ele me carregava para fora em seus braços como se eu fosse um bebê. Os grossos pingos de chuva atingiram minha cabeça e como se fossem bombas explodiam em mil gotículas que escorriam pelo rosto e pelo corpo.
E de repente mais nada.
Num piscar de olhos havia um teto sobre a minha cabeça e eu estava rodeada de desconhecidos.
Olhei para trás e vi apenas escuridão.
Duas escuridões: uma calma e uma outra que corria rapidamente arrastando consigo tudo que conseguisse.
Quando o sol apareceu não havia mais nada que eu conhecesse.
Esperei que viessem me buscar, ninguém apareceu.
Segui ali, no chão, com a cabeça entre as pernas e as mãos ao redor dos joelhos.
Chorei muito até compreender que dependia apenas de mim reconstruir tudo.
Ergui a cabeça e olhei novamente a destruição ainda sem saber por onde começar, mas não tinha opção, eu tinha que seguir em frente.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Sexta-feira

Era apenas uma reunião entre amigos.
Sexta-feira.
Saímos do trabalho e fomos direto ao barzinho.
No palco, um dueto tocava um pouco de tudo. Aos poucos todos foram indo embora. Menos nós.
Estávamos felizes mostrando nossos dotes artísticos, um tanto quanto exacerbados pelo álcool. Ríamos muito a cada passo em falso, a cada desequilíbrio.
Ele começou a me rodopiar. Rodei, rodei, rodei até quase cair. Foi quando ele me levantou que nossos lábios se tocaram.
Um passo atrás.
Silêncio.
Incredulidade.
Aline, desculpa! Eu sei que eu não devia... Eu...
- Tudo bem, eu disse - Olhando fundo nos olhos dele. - Não te preocupa.
- Não?!?
-Não Cléber. Posso te pedir uma coisa? Me dá um beijo de verdade?
Eu só queria lembrar para sempre daquele momento, queria saber que sabor teria aquele beijo. Eu sabia que não poderia ficar com ele. Mas era naquele momento ou nunca. Então continuei olhando nos olhos dele e esperando ele metabolizar o que eu havia dito.
Demorou até eu perceber seu rosto se aproximando. Senti um frio na barriga, seguido de um toque na nuca e lábios molhados encostando nos meus. E o beijo fluiu numa sintonia completa. Foi difícil parar. Superou minha expectativa.
Ficamos nos olhando sem saber muito bem o que dizer. Ambos sabiam como seria difícil encarar a segunda feira.
Melhor pagar a conta e ir para casa.
Foi impossível dormir. Passei a noite em claro revivendo aquele beijo me imaginando as mãos dele tocando meu corpo. Minuto após minuto lembrando dos sorrisos, das agradáveis conversas no trabalho.
Tentei me convencer de que eu não me apaixonaria.
Tentei me convencer de que as coisas continuariam como antes.
Tentei me convencer que eu continuaria tratando o Cleber como todos os demais funcionários.
Segunda-feira chegou e entrei na sala da diretoria disposta a colocar tudo em ordem. Eu havia deixado uma bagunça na minha mesa na sexta.
Na reunião com a equipe tudo ficou muito claro: o respeito e a admiração continuavam os mesmos, mas algo tinha mudado.
Eu podia notar o olhar de cumplicidade dele.
Eu precisava aprender a lidar com isso.
Eu precisava de uma pausa
de um café
de chocolate
de ar puro
de um beijo dele....

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Fênix

Esses dias lembrei deste blog, há muitos anos esquecido. Voltei aqui porque queria mostrar um texto para alguém que evocou meu lado criativo. Um amigo, quase um irmão gêmeo de tão parecido comigo. Alguém que a vida aproximou e que gostaria que nunca se afastasse.
Eu estava tranquila, perfeitamente adaptada (ou não) à rotina casa - trabalho - filhos e de repente eu estava com um turbilhão de ideias de todo tipo na minha cabeça.
De uma hora para outra o pensamento deixou de ser linear e encontrei um lado adolescente que eu achava que nem sequer existia mais.
Comecei a colocar no papel para não esquecer, para não surtar, para entender o que estava acontecendo e acordei... Acordei para toda a vida que existe ao meu entorno.
Voltei aqui e acabei lendo tudo novamente...
Ele fez eu me questionar se eu deveria voltar a escrever... Talvez eu deva.
E não... eu não estou apaixonada por ele.... Amigo do coração, só amigo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A velha

Uma imagem, uma pessoa, um lugar... eis o resultado

Coitada da velha, andando sozinha,
na rua deserta em plena madrugada.
Coitada da velha, mal vestida e suada,
esperando o ônibus, em pé na calçada.

No bolso, o dinheiro, uns poucos trocados,
nas mãos dois saquinhos já muito rasgados.
Sozinha no mundo, num beco escuro,
repensa sua vida e se vê sem futuro.

Coitada da velha, que tanto amou e já foi amada,
que trabalhou tantos dias, nesta longa jornada.
Hoje espera sentada, uma ajuda, um afago,
engolindo suspiros e evitando lágrimas.

Lá vai ela descalça, devagar, cabisbaixa,
com suas sacolinhas atravessando a praça.
Abandonada, sem rumo e apesar da má sorte
ela nunca desiste de lutar contra a morte.

sábado, 22 de junho de 2013

Carta aos colegas médicos

Caros colegas,
                Sou médica há 11 anos, atualmente trabalho como reumatologista em um centro de saúde (SUS) e também atendo pacientes com convênio de saúde no consultório. Tenho orgulho da minha profissão, apesar da nítida desvalorização que vejo refletida nos baixos valores pagos pelos governos e convênios de saúde, as péssimas condições de trabalho oferecidas pelo sistema público e o consequente descrédito da população na nossa capacidade resolutiva.
                Tenho acompanhado as notícias na imprensa e os movimentos nas redes sociais. Ontem à noite, foi com profunda tristeza que ouvi a presidente Dilma Rousseff reiterar em seu discurso em cadeia nacional que para resolver os problemas da saúde traria 6000 médicos do exterior. Todos nós sabemos que esta é uma medida meramente política que não acarretará em nenhuma mudança benéfica para o SUS.
                Nas redes sociais, muitos colegas clamam por greve e por manifestações na rua para buscar melhores condições de trabalho, salários dignos e o cumprimento dos acordos de pagamento para os colegas dispostos a atuarem em cidades menores. Embora eu concorde plenamente com estas reivindicações, temo que neste momento não o povo não se posicionará ao nosso lado se optarmos pela greve. O público atendido no SUS enxerga a realidade que chega a eles. Não é incomum ouvir frases assim nas UBS: “não tem consulta porque não tem médico”, “não adianta nem tentar porque o médico já foi embora”. Somos vistos como vilões porque “não trabalhamos”, “não cumprimos a carga horária”, “nem sequer olhamos a cara do paciente”. O paciente não percebe que somos obrigados a atender um número tão grande de pessoas por hora e que por isso somos obrigados ou a diminuir a qualidade do atendimento ou a permanecer horas extras no trabalho sem sermos remunerados por elas. O paciente não sabe que lutamos contra a falta de medicamentos na rede básica ou que o seu diagnóstico ou tratamento realmente depende daquele exame que o SUS não disponibiliza ou que vai levar mais de um ano para ser realizado. O povo não conhece outra realidade que não seja a de hospitais e postos de saúde sucateados, sem macas e equipamentos e com salas de emergência superlotadas. Aliás, muitos devem até pensar que as emergências estão superlotadas porque não há médicos para atender a todos e resolver os problemas e por isso as pessoas vão se acumulando nos corredores.

                Tenho absoluta certeza que não somos mercenários como alguns induzem o povo a acreditar. Até porque, se quiséssemos sê-lo a primeira medida seria mudar de profissão.  Agora não é hora de greve, é hora de mostrar quem somos e nosso valor. Acredito que está na hora de virar o jogo e mostrar à população o que ela realmente merece: um atendimento médico de qualidade. Atender bem nos postos de saúde, mesmo que isto signifique terminar o horário predeterminado sem ter atendido todos os pacientes marcados. Aqueles que não forem atendidos podem até se irritar num primeiro momento, mas logo estarão clamando junto às autoridades o direito de serem atendidos com a mesma atenção e respeito. Devemos mostrar que as nossas reclamações e as deles (povo) são exatamente as mesmas: todos querem um sistema público de saúde de qualidade. É nossa obrigação ensinar os números das ouvidorias das prefeituras e secretarias da saúde para que as reclamações sejam feitas para os reais responsáveis pelo mau funcionamento do SUS.